sexta-feira, 12 de junho de 2009

Sobre o dia dos namorados: mini conto


De segunda a sexta-feira Rafael acordava às 06hs30min, pulava da cama, ia ao banheiro, tomava uma rápida ducha, escovava os dentes, utilizava o desodorante, borrifava duas vezes um perfume suave no pescoço, vestia sua roupa e literalmente, corria para o trabalho.
De casa para o trabalho levava uns 30 minutos, já que apenas precisava tomar um metrô entre as estações da Liberdade e Vila Mariana. E durante os poucos minutos na minhoca de metal avistava uma bela e simpática moça, que devido ao clima matutino de outono/inverno, sempre estava vestida com uma blusa preta com um cachecol vermelho enrolado no pescoço. Mas o que mais chamava a atenção do rapaz era o olhar compenetrado no livro que segurava firmemente numa das mãos, sendo que de tempos em tempos a outra mão ajeitava os óculos que teimavam em escorregar pelo delicado nariz levemente arrebitado da assídua leitora.
Quando estava hipnotizado observando tal figura, ouvia o sinal soar e o operador anunciar a estação da Vila Mariana como próxima parada. Era hora de voltar para o mundo real.
Sobre o trabalho de Rafael, nada direi. Não que o trabalho deixasse de moldar nosso personagem, mas o foco dessa breve história é o processo onde a curiosidade do menino o levou a conhecer a moça da leitura, termo cunhado pelo próprio.
Como a moça sempre estava no mesmo canto do vagão do metrô, dia após dia o cara foi se aproximando dela. Numa quinta-feira, por estar ao lado dela, percebeu que a garota lia Dom Casmurro escrito por Machado de Assis. Ele presumiu que ela já lera três quartos do livro ao observar as páginas presas pelo dedão esquerdo. No mesmo dia durante a noite, sem hesitar, ligou o computador e foi vasculhar no Google resumos sobre a obra de Assis. Rafael utilizou esse recurso por simplesmente ignorar o conteúdo do livro, apesar de já existirem filmes e até um seriado sobre o mesmo. Em todos os resumos que lera percebeu que uma das incógnitas da obra era a questão da traição ou não de Capitú em seu casamento com Bentinho, apesar do narrador da história apontar elementos que podem inclinar o leitor a crer na traição.
Na sexta-feira, ao entrar no vagão e se aproximar da moça da leitura, tomou coragem, e dirigiu as seguintes palavras para ela: Desculpe interromper sua leitura, mas gostaria de saber sua opinião, e então, Capitú traiu ou não Bentinho?
A moça surpresa dirigiu o olhar para Rafael e de maneira simpática respondeu: Olha, eu acho que não, acredito que o ciúme de Bentinho o fez ter essa impressão errada de Capitú. E você, qual a sua opinião?
Ele não contava com a resposta da menina e muito menos com essa pergunta, mas de maneira safa e com algum embaraço respondeu: Eu ainda não cheguei a uma conclusão.
Imediatamente a moça se surpreendeu: Sério!? Você é a primeira pessoa que eu conheço que fica em cima do muro nessa questão. Mas o que falta para você chegar a conclusão?
Só restou a Rafael soltar um: Bem..., então, tipo assim... quando de repente ouviu soar o sinal e anunciar a estação da Vila Mariana. Rapidamente disse a moça: Poxa vou ter que descer no próximo, que pena, bem na hora em que iria te explicar... Se você não se importar eu explico outro dia, claro, se for possível. A moça sorriu e balançou a cabeça de modo afirmativo. Então ele se despediu dela com um tchau e saiu corado do vagão.
Enquanto subia as escadas ele pensou como transmitiu uma péssima imagem para a moça, aliás, esqueceu até mesmo de perguntar qual era o seu nome. Em sua mente conversava consigo mesmo:
Eu ainda não cheguei a uma conclusão, droga, ela deve ter pensado que eu sou um idiota, mas pelo menos ela interagiu comigo, quem sabe outro dia? Mas e se ela me achou um desses malucos chatos que puxa conversa no metrô? E o nome dela, porque eu não perguntei, já que ela havia me dado atenção, tsc, tsc, tsc, quando vou aprender a ser objetivo? Quem sabe na segunda?
Ao chegar no escritório se recordou que aquela sexta era o dia dos namorados. Mesmo há alguns anos sem namorada sabe se lá porque, pelo menos, naquele dia foi dormir abraçado a uma ponta de esperança proporcionada pelas infinitas possibilidades que podem ocorrer no próximo encontro, mas antes, precisava ler mais sobre o enigmático livro de Assis para bolar uma boa explicação sobre não ter uma posição definida sobre a traição ou não de Capitú.

Imagem: Sugoi

2 comentários:

sugoi disse...

já flertei garotas e suas leituras ...
muito bom ;D

Babi disse...

esplêndido conto! Machado é o meu predileto. Meu favorito, meu escritor. Eai capitu traiu ou não? eis a questão...