domingo, 2 de agosto de 2009

A primeira impressão, o sofá, o gato, a coriza e adjacências


A sala estava repleta de sombras. As reformas realizadas no apartamento desativaram o sistema de iluminação da sala. Em “L” o sofá fofucho acompanhava uma bendita mesinha, que apoiava um arranjo floral de plástico. Um gato passeava no local, claro, se comportando como o dono do mesmo e naturalmente distribuindo o seu pêlo por onde passava.
Eram três pessoas sentadas no ambiente. A ocasião? Surreal. Rapaz de vinte e quatro anos visita namorada antes virtual agora real e tem o primeiro contato com a mãe desta, residente numa cidade quente, seca e fantasiosa. Naquele momento o objetivo do sujeito era simples: causar a melhor impressão possível.
Os três sentam no sofá e começam a desenvolver um diálogo. No inicio, trivial, conversando sobre a viagem, o clima da cidade, coisa e tal. Terminado isso, o silêncio pula na frente das pessoas, só não é tão constrangedor devido à falta de iluminação e a intervenção felina do gato branco, peludinho, que passeava pela sala não respeitando a presença física das pessoas, inclusive caminhando sobre pernas e braços. Nesse momento, uma estranha sensação de déjà vu assombra João; a mãe da menina é muito parecida com a mãe de uma ex-namorada, a dona Maria. Inusitado.
O rapaz com a garganta seca, antes de iniciar o seu discurso, pede um copo d água à namorada cujo apelido é Drika. Após o primeiro gole, colocou o copo na mesinha e ao inspirar percebe que o nariz recebeu justo naquele momento a visita de uma maldita coriza, numa fração de segundos ele recorda as palavras estúpidas de uma canção infantil entoadas pela Vovó Mafalda (algo assim: “ai meu nariz, ai meu nariz, ele se parece muito mais com um Chafariz!”). Mesmo assim, começa a discursar: “Então dona Ana, como você sabe conheci a sua filha na internet há alguns meses e depois de muitas conversas pelo e-mail (?), msn e telefone resolvemos namorar (nesse momento, uma pequena quantidade de muco transparente descia generosamente do nariz, discretamente, a mão esquerda toca o infeliz impedindo a gosminha de pingar na camiseta) e gostaria de saber se a senhora tem alguma recomendação, sei lá, queira falar alguma coisa sobre isso”.
Então dona Ana iniciou um breve relato sobre sua história, e claro, nesse período a cabeça do casal apenas balançava verticalmente e em alguns momentos horizontalmente intercalados por interjeições (oh!, mesmo?, caramba!, duro né?, etc.) e a mão esquerda juntamente com o nariz já estavam ficando melecados. Num dado momento, João pediu licença, foi apressadamente ao banheiro, lavou o nariz e as mãos, pegou uma quantia considerável de papel higiênico e retornou a sala sombria, que naquela ocasião estava lhe servindo de companheira para atingir aquele objetivo.
Ao retornar, afundou no sofá com direito ao ruído de pum emitido pela compressão do assento, sentiu a garganta seca e foi dar mais um gole no copo d água. Enquanto a água proporcionava a sensação de alívio na garganta, sentiu a presença de uma coisa estranha rapidamente identificada: pêlo de gato. Naturalmente engasgou, tossiu como um fumante em estágio final de vida e soltou uma bola de pelos da boca (brincadeirinha foram apenas alguns pelinhos).
Nesse momento, o cara já estava pouco se lixando com bons modos. O único pensamento que estava sentado em sua mente era de matar o maldito gato, e claro, “...tomar o maldito anti-alérgico, dormir e acordar no dia seguinte, que m#@x!”. Mesmo acudindo o rapaz, por alguma estranha razão, a dona Ana desejou maior interação com ele, e iniciou uma série de perguntas, do tipo “você mora lá a quanto tempo”, “o que fazem os seus pais”, “é formado em quê?”, “trabalha com o quê?”, “onde você estudou?”, etc.
Solicito mas aparentemente irritado, João foi respondendo as perguntas. Desejando estabelecer laços de afeição, fazia questão de iniciar as respostas com vários “então dona Ana”, entretanto, automaticamente trocava o “dona Ana” por “dona Maria”, sabe como é que é, herança do relacionamento (bem) passado. Depois de alguns momentos percebeu o ocorrido, mas, à francesa, apenas começou a fazer um grande esforço para não cometer a gafe. Sabe-se lá quantas vezes trocou os nomes, pois o nariz, a garganta, o ódio pelo gato e o cansaço da viagem começavam a alterar o seu comportamento.
Após terminar o diálogo, pegou suas roupas na mala, correu para o banheiro, tomou um banho intermitente (água fria e água quente, lembram da reforma?), se vestiu e passou um tempo, digamos, interessante com a namorada. Aquilo era só o começo do que estava por vir nos próximos dias.
Dias inusitados.